segunda-feira, 27 de março de 2017

NO DIA 27 DE MARÇO 2017 | #politicaculturalemportugal | «É ainda esse combate, o combate pelo teatro adulto de uma democracia adulta, que nos falta cumprir, a caminho de uma democracia mais funda e aberta, plural, mais livre e mais culta, de uma democracia verdadeiramente cultural e laica»



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Mas aqui temos a mensagem, na integra, do Teatro da Rainha:


MENSAGEM DO TEATRO DA RAINHA
do DIA MUNDIAL DO TEATRO
27 DE MARÇO
 

O actor acende a boca.
Herberto Helder



O TEATRO DA RAINHA assinala o dia Mundial do Teatro com uma sessão de poesia — de Bertolt Becht e Herberto Hélder — e música para teatro, às 21h30, na Sala Estúdio.

Os dias mundiais são convenções que, dependendo das circunstâncias, são manifestações mais festivas, ou puras formas de resistência, ou mesmo dias nada mundiais, mesmo apenas locais. Uma festa mundial do teatro não ignorará por certo todas aqueles lugares no mundo em que o teatro não se pode fazer, proibido, ou mesmo inexistente — o teatro, sendo universal até pela sua linguagem, não é um fenómeno mundializado, há culturas em que a “exibição” do corpo é proibida. O teatro tem entretanto formas variadas de se exprimir e é uma arte que pertence a várias culturas para além daquelas formas que pertencem à tradição europeia. O teatro japonês é um rito estético específico, assim como outras formas teatrais que chegaram aos nossos dias, como a Commedia dell’arte, ressurreição relativa de um teatro especificamente nacional, ou como certas formas de “teatro africano” que designamos teatro porque não existe um vocabulário próprio que as nomeie  — porventura teatro entre a dança e o teatro, rituais com uma narrativa, como a dança Mapico já fora do contexto ritual em que se exerceu, ou o Auto de Floripes, mistura de português arcaico, narrativa do ciclo carolíngio fundida com a inventiva gestual e plástica, africana, do povo do Príncipe, carnaval de rua.
O nosso dia mundial do teatro não pode entretanto ignorar que, entre nós, e na Europa, se assiste a uma regressão do espaço de exercício da sua força institucional, voltando o teatro de novo a exercer-se em circuitos alternativos e marginais, estando por assim dizer acantonado, livre de existir na sua precária condição meio marginal, pelo menos aquele que não se vendeu conformando-se com um formato de existência e produção que de algum modo o nega. Há no teatro também um destino burocrático, mais de ritual da democracia do que ele próprio democratizante. Há muito folclore espectacular no seu lugar, muito não teatro, ou snobeira espectacular, que se faz em seu nome.
Com a austeridade novas formas de censura das liberdades do teatro surgiram e, mais que todas, aquelas que lhe tolhem o passo, pela via dos cortes, da censura económica. A austeridade significou uma limitação das liberdades e dos meios do seu exercício, uma limitação das fronteiras do teatro — também aqui se erguem muros, que, por muito bonitos que sejam são muros. Isso aconteceu ao teatro. E ainda não saimos desse golpe, num país em que, em boa verdade, o teatro, tal como ainda se pratica na Europa alargada que o inventou, desde a origem grega à invenção da encenação entre a França, a Alemanha e a Rússia, nunca teve um verdadeiro direito de cidade, tendo vivido, mesmo desde Abril, em circunstâncias de expressão pública muito limitadas, longe daquelas que devem propulsionar as suas potencialidades democráticas e de gosto estético, como arte social por exelência, como arte pública, como modo de qualificação dos portugueses. Estas potencialidades estão longe de ter sido exploradas de acordo com um verdadeiro propósito de cidadania e de liberdade de experimentação estética. O Estado nunca assumiu uma política cultural como componente da democracia, tal como em outras áreas, da educação à saúde.
Estamos longe, de facto, de ser um país de teatro como a Inglaterra, ou a França ou a Alemanha, para dar estes exemplos, pela simples razão de que se por um lado os meios de produção e financeiros são limitados, assim como os modelos organizativos são frustes — o modelo das companhias é de quinhentos e por muito que se tenha adaptado aos tempos actuais vive ainda muito de uma impossibilidade de dialogar com o teatro como um todo —  em boa verdade ainda não inscrevemos o que seria enraizar o teatro na nossa democracia, na nossa cultura nacional, com a sua diversidade e pluralidade identitárias e constitutivas. Somos um modo precário de o teatro existir, muitas vezes com muita inventiva, é certo, mas não devemos ignorar que muito do teatro actual nos está vedado, tanto por razões de elenco e equipas, como por razões de meios de criação e arquitecturas, como ainda por razões de cultura teatral, de fundamento estético consciente das opções do fazer — não, o teatro não é um gesto de absoluto criacionismo nascido do vazio, é uma tradição, são inúmeras tradições vias e só é verdadeira experimentação na medida em que dilogue livremente com a sua memória.
É ainda esse combate, o combate pelo teatro adulto de uma democracia adulta, que nos falta cumprir, a caminho de uma democracia mais funda e aberta, plural, mais livre e mais culta, de uma democracia verdadeiramente cultural e laica.
 


Atualizado.

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