segunda-feira, 1 de agosto de 2016

RUI VIEIRA NERY | «Uma cidadania científica partilhada»


Disponível aqui,
 no jornal Público


Excertos:

«(...)
Compreende-se, deste modo, a falácia dos critérios de pretensa “utilidade económica” que têm caracterizado algumas das políticas científicas neoliberais dos últimos anos, segundo as quais haveria que dar clara prioridade às ciências aplicadas, geradoras de patentes potencialmente lucrativas, em prejuízo sistemático das ciências ditas “puras”, que seriam, nesta óptica, um fim em si mesmas e por isso mesmo, por definição, economicamente improdutivas. Do mesmo modo que nas políticas culturais se deveria privilegiar as chamadas “indústrias culturais”, vocacionadas para o impacto alargado no grande público e enquanto tal geradoras, por excelência, de oportunidades de emprego e de mais-valias acrescidas, em desfavor das vanguardas artísticas experimentais, alegadamente restritas a elites auto-centradas e como tal desprovidas de valor — é, de resto, a visão que se encontra plasmada, por exemplo, nos pressupostos do programa Europa Criativa, que veio substituir na União Europeia os objectivos mais explicitamente culturais do anterior programa Cultura 2000 .
(...)
Mas independentemente deste outcome económico, é no próprio cerne do pensamento científi co que esta interdependência incontornável das ciências exactas tradicionais, por um lado, e das ciências sociais e humanas e das artes e humanidades, por outro — ou, se preferimos, da ciência e da cultura como vertentes indissociáveis da produção de conhecimento —, se revela cada vez mais evidente.
(...)
Da mudança climática à pobreza e à doença, os desafios do nosso tempo são inevitavelmente humanos na sua natureza e na sua escala, e as questões da engenharia e da ciência estão sempre mergulhadas em realidades humanas mais amplas, desde tradições culturais profundamente enraizadas a normas de construção civil e a tensões políticas. Por isso os nossos estudantes precisam também de adquiri um conhecimento aprofundado das complexidades humanas — as realidades políticas, culturais e económicas que moldam a nossa existência —, bem como fluência nas poderosas formas de pensamento e de criatividade cultivadas pelas humanidades, as artes e as ciências sociais. 
(...)
Mas o legado de José Mariano Gago vai mais longe, ao lembrar-nos de que a prossecução do conhecimento, em qualquer ramo, não é um gesto asséptico isolado do contexto social mais amplo em que se processa e livre das responsabilidades de solidariedade humana que este implica. E que essa missão não faz sentido se não estiver submetida a um forte imperativo ético e cívico, que contraponha ao primado neoliberal do valor de troca como único critério de utilidade social a construção de valores mais nobres: os do Bom, do Belo e do Justo. (...)».



Sem comentários:

Enviar um comentário